sexta-feira, 13 de março de 2009

Lembranças


Era esguia, de uma beleza invulgar, cabelo preto comprido, preso por umas tranças de lado, toda ela sorria.
Era a terceira dos quatro filhos. Parecia uma gazela, suas pernas ágeis tudo trepava. E por incrível que pareça a sua maior alegria era estar bem debaixo das saias da mãe…Apesar das traquinices, no seio da família é que se sentia bem.
Mas, estava prestes a acabar…
Haviam uns primos do pai, que viviam mais afastados daquela aldeia, e que eram um pouco abastados, Como lhes dava um certo prestigio terem serviçais em casa, a pobre garota foi forçada a ir trabalhar a troco de meia dúzia de tostões, comida e dormida.
Isso era um alívio para os pais, havia mais uns cobres no fim do mês e menos uma boca a comer.
A pobre miúda com dez ou onze anos, estava angustiada, por se ver em casa estranha e sem os pais e irmãos, a todo o momento chorava, as noites eram tormentosas, encontrava-se em casa estranha e para maior infelicidade a petiz era constantemente molestada pelas primas “finas” filhas do patrão, ora lhe chamavam galga de forma pejorativa, pela sua elegância e beleza, ora juízo de passarinho, como se a pobre garota não soubesse pensar.
Ela que na sua aldeia era o ídolo da criançada, todos, todos a seguiam.
Mas como não bastasse não viam a sua idade e tudo a mandavam fazer: lavar a roupa no tanque de manhã, que para o fazer a menina tinha de partir a camada de gelo que tinha a água, as lágrimas corriam, e os soluços tomavam conta dela, e as “ finas” sempre a massacrar.
Por um lado os pais estavam descansados a filha estava a trabalhar e o resto não importava, era obrigação dela, visto já ter feito todos os estudos ( a 4ª classe).
Mas o coração da pequena não aguentava o modo como era tratada e as saudades de casa faziam-na sofrer demais.
Um dos dias que foi à fonte buscar água, pensou, porque não agora? E se bem o pensou melhor o fez. Largou tudo e sem conhecer o caminho meteu pés ao caminho atravessando terrenos, montes fazendas, sítios que nem sequer sabia existirem, mas o seu sentido de orientação pelo sol levou-a a bom porto.
Claro que ficou com um medo de morte pelo que lhe iria acontecer, já sabia que a violência física iria ser aplicada em si, ser tão frágil, franzina e carente, que só fugia para ter amor.
Como tinha medo de apanhar tareia, foi ter com a avó materna, que a amparou e a escondeu até que pôde.
Ora no final da tarde, e como a menina não havia voltado da fonte, os primos telefonaram para o único telefone existente na aldeia, dando a conhecer que a menina havia fugido. É obvio que os pais apesar de tudo ficaram preocupados, e a mãe correu pela aldeia para ver onde ela estava. Quando se apercebeu de que a avó a tinha escondido, ficou possessa, e gritou: saia da frente da miúda senão levam as duas…
A avó não teve remédio e a garota lá foi de rastos a chorar e a levar pancadaria, como não foi suficiente e a mãe ainda não satisfeita, fez as queixas ao pai, que se encontrava já bastante atestado de vinho.
E a melhor maneira que lhe pareceu para a castigar, como se não tivesse já sido castigada, foi desancá-la com o cinto, e tanto bateu que a fivela abriu uma brecha na cabeça da criança e o sangue jorrou por todos os lados, satisfeitos com a acção pois o bater era comum neste casal.
A criança ficou bem mal, estive cerca de dez dias de cama tal foi o maltrato.
Eu sei que “ casa que não tem pão todos ralham e ninguém tem razão “ mas isso não deveria ser motivo para maltratar uma criança linda e ternurenta que só corria para os pais em busca de amor…
O tempo passou e a bela garota agora com idade adulta, já se encontrava em Lisboa a trabalhar. Os problemas continuaram a ser imensos para certas mentalidades.
A garota, agora mulher tinha uma figura linda, era alta, bem elegante, cintura fina, olhos escuros e vivos, boca bem desenhada, e claro bem namoradeira… Os pretendentes pareciam abelhas em volta das flores.
E aí os problemas surgiam de novo, sempre que os pais tinham uma informação desta ou daquela, porque a inveja roía… A garota bonita era malhada com o que houvesse à mão.
Até que um dia e para alivio dos pais, a menina arranjou um namorado na América, era ideal para seus problemas terminarem e não haver mais falatório a respeito da mesma.
O noivo veio a Portugal casar. E a pobre garota que só queria estar com os pais, viu-se de malita na mão com meia dúzia de peças de roupa e lá seguiu vida nova.
Para os pais foi um alívio, mas o sofrimento da garota não ficava por aí…
Hoje já com idade avançada, mãe e avó, doente a cansada, ainda recorda bem demais, a falta que lhe fez a casa dos pais, o que mais queria era um sonho, o sonho de ser amada e bem tratada por quem lhe deu a vida.
Ser pobre é o quê? Não ter dinheiro! Sim , será?
Mas pobre de coração o que será? Rejeitar e tratar mal quem saiu de dentro de si?
Eu acho que é maldade.
Mas tudo passa na vida e hoje o que a garota mais quer , é que não façam a ninguém aquilo que fizeram com ela.

03 de Março de 2009
Margarida

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