sábado, 2 de maio de 2009

Cerejeira


Caminhos da vida


Sentado debaixo de uma cerejeira, numa noite de Agosto em que o luar era muito reluzente, sentindo o cheiro da terra e das árvores, interrogava-me quando voltaria novamente a ter aquela sensação de paz e a sentir aqueles cheiros tão familiares e agradáveis e com os caga-lume (pirilampos) andando à minha volta como que iluminando-me os pensamentos, ou a despedirem-se de mim. Não sei mas acho que até eles pressentiam o meu nervosismo, a minha tristeza, e ansiedade, pela nova vida que vem a caminho. A partida para a grande cidade de Lisboa está eminente.
Ontem como hoje, perdia-me em cogitações:
Terminei a 4ª classe e a família precisa de ajuda para as despesas da casa mais uns escudos fazem sempre jeito.
Assim, já fiz as minhas despedidas aos meus tios e tias já as fiz aos poucos... A da família da casa, meus pais e irmãos, irão comigo até à aldeia próxima que dista cerca de 3 km local onda passa a camioneta, que me conduzirá ao novo destino.
Com os gaiatos a saltitar, a minha partida nem irá dar motivo a choros, pois isso me deixar-me-ia bastante triste. Já chega, o afastamento, de todos os que mais quero, e o aperto que sinto no meu peito.
O meu pai na noite que antecedeu minha partida e quando lhe beijei a mão, pedindo sua bênção, (costume usual na minha aldeia,como sinal de respeito para com os mais velhos, e penso que provém da religião católica. É um hábito que nos é imposto desde a nascença), tentou-me transmitir como me deveria comportar, o respeito que deveria ter para com os mais velhos, e deu-me todos os conselhos e transmitiu-me todos os valores dignos de um homem de bem, mas eu senti foi o seu sofrimento por ver que seu filho teria que abandonar a casa em busca de melhor vida para todos.
Sou novo, eu sei, e tudo irá ser ultrapassado, Vou ver se consigo melhorar as condições de vida, pois na aldeia nada existe.
A noite alta continua , e eu aqui sentado, a terra cheirando a quente deste sol de Verão, os pirilampos vindo ao meu encontro, como que a quererem despertar-me deste meu sonhar acordado. Sinto o meu peito bastante contraído pelas saudades que sei vou sentir, mas como mais velho de quatro filhos irei, e lutarei, para melhorar as condições de nossa vida.
Mas, as imagens teimam em surgir à minha mente. Vem aquele episódio em que minha irmã a segunda dos quatro filhos, andava na brincadeira na cerâmica de meu avô. Lembro-me que existiam dois tanques quadrados aí com quatro metros de lado com cerca de 80 cm de altura, onde os empregados de meu avô, o Natalino e o Moura Guedes, amassavam o barro com uns ferros idênticos a catanas, mas mais grossos onde, depois de trabalhado, o barro iria para os moldes de madeira, para manualmente, se fazerem as telhas e os tijolos.
Ora no Inverno como não se podia fazer esse trabalho porque não havia sol suficiente para secar os materiais, os tanques ficavam cheios da água da chuva. Nós, miúdos endiabrados só íamos para onde não devíamos!...
A minha mana com três anos, e assim como ainda hoje sempre gostou de brincar, caiu dentro de um dos tanques. A água estava geladíssima. Ela esbracejava e quanto mais o fazia mais se afundava, para ela o tanque era enorme. Todos os miúdos gritaram por ajuda, mas a família estava um pouco longe, não ouvia! Os garotos correram a chamar gente, mas, então o meu primo mais velho que ela, com cerca de seis anos e num acto heróico e sem pensar no perigo, atirou-se à agua gelada e agarrou a garota com grande esforço e com a ajuda dos demais garotos conseguiu tira-la. Logo de seguida chegaram as minhas tias e a minha avó, que a viraram e fizeram com que deitasse fora toda a água engolida, a algazarra foi de tal modo que todo o povo da aldeia veio ver o que se passava.
A minha irmã ainda levou umas palmadas por não saber estar quieta e ficou de castigo. Os meus pais não ganharam para o susto.
E nesta noite, que antecede minha partida, tudo me vem à cabeça, será o medo do desconhecido?
A pobreza é muita, e um miúdo como eu fazer a escola tem de palmilhar 4km para um lado e outros tantos para voltar para casa.
A aldeia está longe de tudo, os agasalhos são poucos e pobres não têm dinheiro para irem para uma Escola Industrial ou Liceu.
Também me vem há ideia um Inverno em que meu pai matou o porco para salgar - não havia outro modo de guardar as carnes, e quando se mata o porco faz-se comida para toda a família. Eu era um garoto como tantos outros, todo cheio de genica e curiosidade, empoleirei-me num pilar da casa que não era rebuçada. Pus um pau num buraco de tijolo para poder ver tudo, claro que meia dúzia de tijolos me caíram em cima da cabeça.
O meu pai, sem dinheiro nem transporte, teve que chamar um táxi (coisa de ricos), o único numa zona de 30 km , para me levar ao hospital, enquanto a minha mãe me levava ao colo na direcção, de onde o carro haveria de chegar. Tinham telefonado do único telefone da aldeia. O meu pai seguiu à frente para pedir dinheiro emprestado para me poder tratar devidamente.
Ainda a noite é uma criança, como costumo ouvir os grandes dizerem, e eu aqui sem dormir, com estas coisas todas a virem à minha memória.
Fui operado à cabeça. Estive imenso tempo no hospital. Nem sei quanto! Perdi a noção, sofri várias intervenções cirúrgicas, mas graças a meus pais fiquei tudo se restabeleceu.
Hoje recordo o garoto humilde a caminho da cidade, que me esperaria?
Trabalho? Mas o trabalho nunca me assustou, assustam-me sim as pessoas mas o que for se verá.
Já perto da madrugada fui para a cama, mas pouco descansei. A emoção e o medo do desconhecido apavorava-me.
E assim, ainda o sol não tinha nascido, lá parti para a aldeia que existe no sopé da colina e que dista cerca de 3 km para apanhar o transporte para a cidade, apesar da distância da cidade ser cerca de 60 km a camioneta leva três a quatro horas a chegar a Lisboa.
A paisagem continua linda e, na altura tentava reter na memória o deslumbramento do raiar da aurora, a extensão que a nossa vista abrange até ao horizonte, é de dezenas de kilómetros, até as torres do convento de Mafra se avistam, e engraçado, antigamente não havia relógios como hoje e meu pai dizia muitas vezes as horas pelo sol, e para ele quando era meio dia, o sol estava entre as duas torres do convento de Mafra, e este dista da minha casa cerca de 30 Km.
Cheguei bastante cansado, não sei se pelos nervos se pelo receio do desconhecido.
E, meu Deus, o que me esperava uma mercearia onde o trabalho era carregar os cestos de compras para as senhoras! Mas não era pelo elevador! Era pelas escadas de serviço.
Dormia num vão de escada da loja e, à noite, a solidão era mais que muita. Valia-me os domingos porque ia para casa de minhas tias e, aí sim, tinha os miminhos todos, era adorado por todas elas. Meus pais entretanto sofriam com a minha ausência.
Continuei lutando e quis a vida que fosse fazer a tropa a Timor, local onde adorei estar. Muito pobre parecido com a minha aldeia, mas valeu pelos conhecimentos adquiridos.
A minha mana que se ia afogando, costuma dizer, que sou seu ídolo, o seu confidente, o seu irmão do coração, o seu amigo, um excelente filho, mas além de tudo um excelente ser humano.
E ainda hoje que já lá vão sessenta anos, a admiração que tem por mim creio que não tem limite.
Claro que voltei da tropa e com o que fui aprendendo ao longo da vida, minha vida está mais suave. Sou muito humano e tolerante, mas jamais esquecerei a luta e aprendizagem de vida que tive de fazer para chegar aqui.
Hoje estou com quase sessenta e quatro anos estou sentado debaixo da mesma árvore, pensando no que falhou na minha vida…
As separações... Os que partiram... , e não sei se sou mais feliz do que quando tinha a idade em que os dos caga-lume me beijavam a face.
Mais rico sou, pois minha filha enche-me a alma e com ela perto o meu coração brilha de amor.
28 de Fevereiro de 2009
Guida

3 comentários:

  1. Ilustre colega: A sua historia embora bonita sobre o ponto de vista literário. Ilustra bem como se vivia em Portugal nessa época.
    Alguns já se esqueceram, Até parece que têm vergonha de Festejar a Revolução de 25 Abril.
    Como disse o poeta: (As portas que Abril abriu), transformaram a sociedade Portuguesa, deu-nos a dignidade de sermos Homens e Mulheres Livres, apreciados e respeitados por esse mundo fora.
    Querida Amiga continue a narrar a Historia deste povo, pois é uma forma de contribuir para um futuro melhor.

    Bravo!..

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  2. Obrigada Joaquim é sempre agradável ouvir um comentário simpático.
    Assim farei, e darei a conhecer tudo o que me for possivel, para que nossas raízes não sejam esquecidas.
    O meu bem haja.
    Guida

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  3. Reminiscências dum passado que não volta.Muitas vezes recordamos..recordamos e pensamos que afinal nossa vida poderia ter sido diferente. Agora e afinal é alimentar o presente com algo do passado sem esquecer a-pesar da idade o futuro.

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